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Sente-se
20ª exposição individual
SENTE-SE (SERASSENTOASSÉDIOSÉ)

Esta exposição concretiza a celebração dos 30 anos de fotógrafo. Ao longo dos anos, Miguel Louro fotografou “assentos”, quase sempre por casualidade; e há cinco anos para cá, a ideia de assento impôs-se como campo de significação e daí tornou-se território de pesquisa, imperativo de procura. As viagens pelos vários cantos do mundo contribuíram para a gestação da exposição.
Fotografar assentos é um ponto de partida como é um ponto de chegada, até pode ser um exercício de ilustração da semântica lexical, envolvendo o fotógrafo na casualidade dos objetos que realizam o significado de “assento”, ou lugar onde alguém se pode sentar, mais para nos confrontarmos com as possibilidades imagéticas dos “objetos” do que para os nomearmos ou singularizarmos.
A natureza diferente deste trabalho resultou, pois, de um acumular fotográfico dedicado à ideia de “assento”. Trata-se de uma recolha lexical, parafraseando a linguística, trazendo esta para o centro da fotografia que é pensada enquanto registo, enquanto fixador de realidade, enquanto marca, vocábulo, portanto, o seu objetivo é nomear, na língua universal da visão, o objeto que se fez assento para alguém.

E assim se obtêm três possíveis categorias visuais de assento: primeira, o lugar onde um corpo pode poisar, fixar-se em posição de descanso ou de espera ou de paragem, sem configuração específica, resultante de uma elevação natural, a rocha, a pedra, a terra, o chão, ou resultante da construção humana para outra finalidade: o muro, a parede, a casa, o degrau, o carro, o pipo; neste caso, apenas a superfície onde se realiza o ato de sentar é definida como assento, não havendo “braços” nem “encosto”; segunda, o sítio concebido como assento, distribuído alhures e nenhures, aleatória ou provocadamente, no campo ou na cidade, pensado para servir as pessoas em qualquer ocasião; neste caso podemos estar perante objetos que realizam três configurações: apenas com a superfície horizontal de assento, com esta e com encosto, com esta e com braços e encosto, neste caso, o assento mais construído, mais elaborado; terceira, o sítio concebido, pensado, edificado, para ser assento utilitário de outros serviços, a mesa, o escritório, o café, o banco, o museu, a estação de serviço, a paragem de autocarro, a casa de banho, etc.

Encontramos a fotografia a servir-nos o esclarecimento verbal dos sítios que nomeamos, dos lugares que buscamos como pontos de fixação. O assento é o sítio da paragem. Contrastando com esta ideia de assento fixo, ligado à terra na sua primitividade, apoiado na terra nas suas várias configurações, temos hoje a “teologia do assento ejetável”, ou seja, aquela teorização metafísica que perspetiva o homem à procura de assentos virtuais ou de assentos que o obriguem à deslocação rápida e instantânea para outros espaços. A ideia dos bancos dos aviões que ejetam os pilotos quando estes se encontram em situações de apuro foi arrastada para os universos da cibernética, da robótica, da informática, justificando uma ansiedade humana de fuga para outros espaços, incluindo nestes o espaço sideral, a procura de outro planeta habitável.

A leveza das realidades virtuais produziu aquela teoria do assento ejetável como metáfora da fuga para a frente, inclusive, a fuga para outro projeto de homem, o robô que não se senta, opondo desta forma, o homem terreno, de hábitos, sedentário (assentado num lugar), fixado ao solo, ao homem transformável, adaptável, variável, nómada, sempre em trânsito para outro lugar.
Para melhor informação, recomendo a leitura da obra de Mark Dery, Velocidad de Escape, Ediciones Siruela, Madrid, 1995, pp. 253-349.

Numa leitura etimológica de assento podemos, seguindo Álvaro Gomes, Heúresis, Por uma Genealogia / Arqueologia das Ciências da Educação, Didática Editora, Porto, 2000, ir buscar a fundamentação, quer para palavras portuguesas, quer para francesas, italianas e espanholas, ao radical indo-europeu SED- (com a ideia geral de estar sentado) e juntar uma quantidade de lexemas que realizam esta ideia, uns provenientes do latim, outros do grego, como, no caso do português: assear, asseio, assediar, assédio, assento, assessor, assiduidade, assíduo, cátedra, catedral, catedrático, cadeira, poliedro, sossegar, sossego, desejar, desejável, desejo, dissidência, dissidente, ensejo, insídia, insidioso, obsessão, presidência, presidente, presídio, presidir, residência, residencial, residir, residual, resíduo, sé, sedativo, sede, sedentário, sedimentar, sedimento, sela, selim, sentar-se, ser, posse, possessivo, possuir, possuidor, ninho, aninhar... Este processo de geração da significação das palavras decorre antes de mais da nossa experiência sensorial e desta alastra outras dimensões, como a dimensão cognitiva e a dimensão emocional.

O assento é a prova do peso do corpo, é uma urgência da gravidade, é a marca do nosso próprio apreço pela terra, pelo mundo material. Não deixa de ser sintomático desta “teologia do assento” terreno o facto de encontrarmos a sua construção ou propiciação nos mais recônditos lugares e nos mais variados espaços do humano, desérticos ou saturadamente urbanizados. Uma reflexão sobre este facto merece que nos sentemos a algures, hoje, que assistimos sentados à destruição do mundo e vemos esta como espetáculo estético de primeira ordem, parafraseando Walter Benjamim, através da leitura de Hanna Arendt quando reflete sobre o trabalho de arte na idade da reprodução mecânica, onde se inclui a fotografia, a fotocópia, o computador, o vídeo, enfim o digital.

De um qualquer banco, seja no silêncio da floresta ou do jardim, seja no silêncio do betão ou da rua, surgem como espetacularmente contrastivas a luminosidade da realidade virtual e a opacidade da desigualdade social, a fulgurância tecnológica e a destruição ambiental. Se a teologia do assento ejetável aposta na previsão de uma fuga para um paraíso futurista ou para um paraíso arcaico recuperado, a teologia do assento terreno prende-nos à contemplação de nós próprios, os sujeitos da transformação e da degradação, os únicos que podem dar-se à contemplação da desagregação social através do êxtase do requinte tecnológico.

“As visões de um ciberêxtase são uma sedução mortal que afasta a nossa atenção da destruição da natureza, da decomposição do tecido social e do abismo cada vez maior entre a elite tecnocrática e as massas com salário mínimo”, reflete Mark Dery na obra citada, a páginas 24, de forma contundente, sem abjurar do encantamento pela parafernália tecnológica, é certo, mas sem a transformar em utopia de resolução imediata, antes a concebendo como mediadora do humano, transportável pelo homem para um qualquer assento em qualquer lugar.

É para que olhemos, pelo menos durante algum tempo do nosso assentamento em algum lugar, para a natureza, na sua plenitude de campo de visão, que alguém dispôs ali um assento, que o criou a partir dos materiais possíveis, que o preparou para ele ser recetivo e disponível.

O fotógrafo viu os assentos e capturou-os: ora como peças principais do cenário, ora como peças secundárias; ora como palcos da exibição humana, ora como refúgios do indivíduo isolado ou à margem; uns frágeis na sua simplicidade de arranjo ou disposição, outros impositivos na sua materialidade ou conceção estética; uns desafiadores da contemplação, barulhentos e ruidosos, agressivos mesmo, outros propiciadores do silêncio, discretos, humildes, religiosos até; uns abertos para o horizonte, outros limitadores da visão, bloqueadores mesmo do olhar para além. Os assentos são afinal reveladores de ser, do ser dos humanos, do ser das terras, dos campos, das cidades, dos jardins, dos próprios edifícios. O fotógrafo reuniu matéria mais que suficiente para a conversa, para a reflexão e para outras práticas criativas de ver e ler uma fotografia. A riqueza semântica desta exposição transforma-a facilmente em metáfora do nosso tempo, para citar um título do linguista Mário Vilela.

Os assentos que possibilitam a reunião dos coletivos humanos, estejam eles em sedes ou em sés, apelam à prática da discussão dos assuntos da polis, no campo ou na cidade, é sobre eles que cai o peso dos problemas políticos, sociais e ecológicos O assento como lugar de assalto ou assédio ao outro, como presídio ou como desejo, é também um impulso da nossa narratividade: Assubi ao céu, sentei-me / De uma nuvem fiz encosto / Dei um beijo numa estrela / Pensando que era o teu rosto - diz a cantiga popular. - José Hermínio da Costa Machado, Mestre em Estudos Portugueses.
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