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Casos de Fotofilia
17º exposição individual
CASOS DE FOTOFILIA

Em 2003, abriu na Casa Museu Nogueira da Silva, em Braga, de 11 de Abril a 10 de Maio. Depois esteve na cidade da Póvoa de Varzim, em dois espaços: no Diana-Bar, de 2 a 17 de Agosto; na Biblioteca Municipal, de 19 a 31 de Agosto. Mais tarde teve lugar no Centro de Congressos e Cultura da Ordem dos Médicos, de 27 de Novembro a 31 de Dezembro, no Porto, promovida pela Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos.

Trata-se de um jogo visual e narrativo, sobre o qual escrevi:
“João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. // João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história.”
(in Carlos Drumond de Andrade, Antologia Poética, Círculo de Leitores, Camarate, 2003, p. 185)
Parafraseando o poeta, o fotógrafo Miguel Louro investiu no mesmo jogo de fotografar outros que fotografam outros que fotografam algo... A previsibilidade do resultado, embora dependente do número de jogadores, pode tornar-se uma narrativa de final inesperado: o primeiro fotógrafo cai no esquecimento, o segundo acaba na barra do tribunal por invasão de propriedade, o terceiro envolve-se numa teia amorosa com uma personagem do segundo que por acaso se encontrava no enquadramento do primeiro, mas que não safra na revelação final.

A exposição que se concebeu para mostrar “casos de fotofilia” assume-se nos equívocos possíveis da etimologia da palavra: o amor, a paixão, o gosto e o desejo pela luz, pela luminosidade, alicerçam os mecanismos predadores de seduzir, atrair, possuir, usar, os objetos e os seres iluminados, no limite, a própria luz. Os casos de fotofilia opor-se-ão, na intenção do autor, e numa atitude interpretativa, aos casos de fotofobia, ou de temor e recusa dos poderes da luz. A sensibilidade à luz torna-se, assim, companheira, ao fim e ao cabo, dos nossos estados de saúde mental.”

O olhar indiscreto de outro olhar atento à indiscrição de outros. A foto da foto, o fotógrafo do fotógrafo, o “voyeurismo” coincidente, a sobreposição declarada, a vitimização consciente, a declaração de guerra, pronto, o resto é sempre um jogo pelas sobras, pelos ângulos, pelos planos, pela velocidade, pela luz, pela distância, pelo foco... Que procura o fotógrafo que não tenha ou que não faça ou que não veja ou que não lhe seja possível fazer? A réplica de si mesmo, uma clonagem da vítima, uma repetição intencional da banalidade, gesto que caracteriza um consumismo contemporâneo: …e de repente todos paramos para ver o da frente que está a ver o da frente que está a ver o da frente que está a ver o da frente que está a ver o da frente... que está a ver o da frente que acaba por ser o que está atrás de todos a ver o da frente! Foi assim com estes casos de fotofilia.

Como comentário ao encerramento imprevisto desta exposição, voltei a refletir sobre a temática, desejando intervenções críticas na imprensa ou tão só procurando o hábito da colaboração nos jornais e nas rádios:
“A presente mostra, Casos de Fotofilia, constitui-se como exercício de imagem, que vê e dá a ver a nossa própria curiosidade sobre o mundo, as pessoas, as cidades, o património. A técnica e a ciência permitiram-nos a viagem com máquinas a tiracolo para o registo das impressões e das expressões, prontas a usar e a revelar; os homens têm tirado bem partido desta tecnologia, a tal ponto que, hoje em dia, os lugares e as pessoas, o próprio mundo, são impensáveis sem imagem. Vemos e vemo-nos, somos capazes de “tudo” por uma fotografia, como se ela fosse a face documental que o lugar, o motivo, o objeto, a pessoa, a luz, em suma, nos dão como herança.
(...) Os casos de amor à luz (=fotofilia) e às criações que ela permite, quer pela banalidade da frequência, quer pela fulgurância das situações vividas para obter uma foto, tornam-se, nesta exposição, um assunto de conversa, um momento de desanuviamento, mas também um exercício de reflexão sobre os estados da felicidade que construímos no dia a dia, em qualquer lado, junto de alguém, a propósito de tudo e de coisa nenhuma”
Já para o Verão da Póvoa de Varzim, insisti numa variação sobre o tema:
“Sentir, sinta quem vê, parafraseando o poeta Pessoa e aplicando a sua regra de leitura dos livros a esta situação de exposição de fotografias, será certamente o melhor conselho a dar aos visitantes, aos curiosos e aos críticos, logo que se encontrem nesta situação particular de serem veraneantes em Póvoa de Varzim.

Referir esta exposição como “casos de fotofilia” resulta do recurso à figura retórica do equívoco, ou interpretação ambígua, pura confusão ou mal-entendido, sofisma ou jogo de palavras. Fotofilia, por oposição a fotofobia, remete o leitor para o jogo das relações pessoais com a luz enquanto forma de expressão dos traços da personalidade: no primeiro caso teríamos o gosto, o desejo, a procura da luz para afirmação de vivências, no segundo caso teríamos a recusa, o medo e a fuga a situações de luminosidade ou de claridade como forma prevalente de vivência. Casos de foto fi lia poderão ser, neste contexto, as situações de vivência das práticas de fotografia que o seu autor elegeu como expressões da sua personalidade em dados momentos, ou seja, precisamente nesses momentos em que se assumiu como viajante turista, ao sabor dos apelos da paisagem e movido pela curiosidade da perseguição ou controle remoto dos seus rivais.

Mas o título da exposição, que se assume claramente como exercício de divertimento, procura a mistura com as ressonâncias dos casos mediáticos que preenchem os arquivos de imagens do nosso quotidiano, atual e próximo, remetendo-nos para essas dimensões recalcadas do desejo sobre os outros, da apropriação dos seus pontos de vista e dos seus interesses focais, da invasão das suas intimidades e da evasão com os seus pertences ou objetos do olhar. Tudo à luz do dia, tudo às claras, nesses territórios globalizados de frequência ou visita obrigatória, cataratas, jardins, casas, torres, castelos, ruas, etc., e nesses momentos de exibição pública dos nossos atos mais rituais, casamento, namoro, aniversário, visita de estudo, luto, lua de mel, etc., etc.

Fotografar aquele que fotografa outro que fotografa outra coisa é, ao fim e ao cabo, navegar nesse mar imenso da procura de outra coisa linda que está para além dessa coisa linda que se julga - ver quando se procura, é, ao fim e ao cabo, usar e abusar dos limites da fotografia como meio de ver. As opções técnicas, sejam elas o enquadramento, a abertura do diafragma, a focagem, sejam elas a opção pelo preto e branco, o tamanho e a delimitação da fotografia no papel, fazem parte integrante deste exercício de perseguição do outro. Poderia argumentar-se que há neste exercício alguma curiosidade etnográfica de revelação dos gestos, “tiques e poses” do outro que fotografa outros, evidenciando sobretudo os atos mínimos da concentração focal e da tomada de vistas como momentos rituais da linguagem fotográfica, mostrando fases e aspetos da encenação figurativa para a câmara escura, expondo algumas facetas da vertigem das emoções perante os lugares ou as circunstâncias. Mas porventura a principal curiosidade etnográfica é a de o fotógrafo se expor a si mesmo como ser inconformado, procurando no Campo de visão dos outros, as razões mais fundas do seu desassossego, ainda que de um modo lúdico e ao longo de muitas viagens.”
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